Tenho certeza que meu editor está tentando me destruir... Seis meses atrás ele me aconselhou – e tive toda a impressão de que ele estava falando sério – que eu deveria escrever de maneira mais moderna, afinal a humanidade estava evoluindo e eu não poderia continuar a compor meus romances seguindo o “velho” estilo dos bestselleristas do hemisfério norte, especialmente os norte-americanos. Já por essa afirmação, eu teria motivos suficientes para mandá-lo às favas e tratar de procurar outro editor. Porém, o bom senso disse ao meu ouvido que eu teria de ter um pouco de paciência e compreensão. Sobretudo, deveria ter um mínimo de cautela e levar em consideração a dificuldade que um escritor tem, hoje em dia, de encontrar um editor... Assim, preferi engolir o sapo e acatei seu palpite, prometendo-lhe que leria alguns desses novos autores de incontestável sucesso de bilheteria.
Consegui “cozinhar” minha promessa durante todo este semestre e, nesse intervalo, produzi mais dois romances, um deles que deverá ser lançado nos próximos três meses, “Também se Lava com Água Benta” e “Fraude Verde”. Evidentemente, escritos como eu sempre escrevi, de acordo com esse editor, “seguindo todos os preceitos ditados por uma literatura ainda do Século XX”. E nós estamos no Século XXI...
No cumprimento da promessa que fizera a ele, dei um primeiro passo importante: encomendei um livro que esse editor recomendara, “Bangalô”, de Marcelo Mirisola que, segundo ele, poderia muito bem servir de exemplo para mim. “Exemplo e guia”, acrescentou.
Recebi, três semanas atrás, um telefonema da livraria avisando que o livro chegara. Ora, eu estava em pleno trabalho de revisão de meu último romance e só quando terminei o que estava fazendo fui buscar a encomenda.
Ontem à tarde, comecei a ler...
Depois de me arrastar pelas quarenta primeiras páginas,resisti bravamente à tentação de exercer o direito de todo leitor: fechar o livro e desistir de sua leitura. Porém, imaginando que, com o avançar do texto a coisa haveria de melhorar, respirei fundo, enchi-me de coragem e de desprendimento, e prossegui.
Lamentei profundamente os quase R$30,00 que me custou o livro, achando sinceramente que os teria aproveitado muito melhor comendo um filé com fritas... a despeito do que possa julgar minha nutricionista metida a enaltecer vegetais e todo tipo de comida de grilo que se consiga imaginar.
E, apesar do que me possa custar do ponto de vista político, decidi que não poderia deixar passar em brancas nuvens o que penso a respeito desse tipo de literatura.
“Ele escreve muito bem”, garantira meu editor.
Não creio que escrever bem seja sinônimo de assassinar a língua. Da mesma forma, não acho que uma “linguagem coloquial” passe, obrigatoriamente, por síncopes e contrações corriqueiras na linguagem falada e que, no entanto, não “pegam bem” na escrita. Usar uma ou outra vez “tá” no lugar de “está”, somos obrigados a concordar, especialmente quando num diálogo, numa fala de personagem que usa normalmente esse tipo de linguagem. Mas o narrador deve se omitir desse tipo de coisa, mesmo sendo um protagonista-narrador. Mesmo sendo “modernoso”. Pelo menos é o que digo no curso que tenho a ousadia de ministrar há muitos anos, “Vencendo o Desafio de Escrever um Romance”, e que ensejou inúmeros comentários favoráveis da crítica consciente e nenhum – NENHUM – desfavorável de qualquer crítica, consciente ou não.
O uso de palavrões... Não sou contrário, fique isso bem claro. Porém, acho que deve haver medida. E deve haver uma total consciência de localização e oportunidade. O palavrão pode ser usado na fala de um personagem cuja formação cultural e educacional faça com que lhe seja permitido tal linguajar. Mais uma vez, o narrador, ainda que protagonista-narrador, deve se reservar uma linguagem mais “casta”, mais sóbria. Na obra – e pelo amor de Deus, não estou falando “obra” no sentido médico – de Mirisola, praticamente não há uma página que não contenha um palavrão. Para quê? Apenas para deixar claro que ele, como autor, tem o direito de falar o que quiser, não importa o momento e nem a oportunidade? Nos anos em que a censura “tesourava” à solta, ainda havia a conotação de desafio à autoridade constituída, uma das características dos intelectuais de antanho e, especialmente, dos pseudointelectuais. Hoje em dia isso não existe mais. Vejam bem... Não quis dizer que não existam mais intelectuais ou pseudointelectuais, estes grassam como ervas daninhas e aqueles andam meio ressabiados, um tanto quanto escondidos, talvez com receio de serem confundidos com os pseudos... Mas o fato é que não há mais a necessidade de desafiar ninguém.
A menos que o desafio seja conseguir violentar regras, até mesmo as do bom senso...
Por que iniciar uma fala de personagem com letra minúscula depois do travessão? Para violentar uma regra banal, simples e já de aplicação pacífica e remansosa? Será apenas a manifestação de uma crise de adolescência mal resolvida? Os adolescentes têm a mania – e com certeza, o direito – de contestar regras. Mas nós, que pelo menos imaginamos que não pensamos mais com cabeça de adolescentes, temos a obrigação de convencê-los – e nem sempre isso é possível, a vida é que acaba por convencê-los – do caminho a seguir. (Este meu comentário – as minúsculas a meu ver mal empregadas – mereceu, da parte de minha consultora literária, uma severa admoestação. Disse ela que era coisa de velho-casca-de-ferida, chato e implicante. “Isso ensejará que você seja criticado!” disse ela. Pode ser, realmente, implicância minha, purismo... Mas o fato é que choca os olhos de alguém acostumado a ler diálogos montados corretamente... Como é o meu caso, infelizmente, talvez, para os Mirisolas da vida.)
Foi difícil localizar o plot principal da obra que, a julgar pelo CDD atribuído (B869.3) está classificado como romance... Afinal, depois de estar já no final, consegui descobrir que a espinha dorsal da obra é a busca da autodestruição do protagonista-narrador. Até bem mais da metade do livro, imaginei que ela fosse o relato da vida de um sexômano que, em determinado ponto de sua psicopatologia, não mais conseguisse distinguir com total clareza sua preferência sexual... E não apenas um sexômano, mas também um alcoólatra e drogado (menciona claramente o uso de cocaína e “outras drogas”)... Como se fosse a coisa mais natural do mudo. Na minha humilde opinião, o consumo de drogas – leves ou pesadas – pode até ser comum, mais jamais pode ser encarado como “normal”, como Mirisola chega a mencionar nas linhas 03 e 04 da página 60 da edição que li (1ª edição, 2003, Editora 34).
Normal é esperar, da leitura de qualquer livro, que algo aproveitável seja transmitido, pelo autor, através de seu conteúdo. No caso de “Bangalô”, esse conteúdo é difícil de se achar. A menos que o recado seja exatamente este: para uma vida inútil, nada melhor que a autodestruição.
Pena que o livro não seja provido de um dispositivo como nas maletas dos filmes de James Bond, capaz de fazer com que ele se desintegre automaticamente...
Para finalizar, creio firmemente que alguém que escreve – e quer publicar – tem por objetivo levar ao leitor suas idéias. E, certamente, deseja que este entenda com clareza o que quis dizer. Para tanto, obviamente, é preciso que a escrita seja inteligível, clara, direta... É evidente que o uso de metáforas, a exposição de pensamentos mais complexos e até mesmo mais difíceis, enriquecem a obra e levam o leitor a refletir sobre o que leu. Isso é mais do que saudável.
Porém, se o autor deixar à solta seus fantasmas pessoais, se ele permitir que estes assumam o controle da escrita sem quaisquer rédeas, sem as peias de uma interpretação que possibilite ao leitor compreender com clareza e nitidez onde o autor quis chegar ou, no mínimo, o que ele quis dizer, é imaginar que, quem quer que abra o livro, seja um psicanalista experiente, capaz de interpretar sonhos e elucubrações...
Sou médico, mas não sou psiquiatra, psicólogo, psicanalista ou psico-qualquer-outra-coisa. Por isso, esse tipo de literaturas – se é que se possa assim denominar “essa coisa” – não consegue atrair minha atenção e, muito menos, é capaz de me dar prazer. O prazer de uma leitura que, além de relaxar, possa trazer algum proveito intelectual.
Mas estou sendo injusto... Mirisola trouxe-me alguma coisa, sim. Trouxe-me a segurança de poder telefonar para meu editor e dizer, de boca cheia, que continuarei a escrever como sempre escrevi. Não me importa que só velhos como eu leiam e apreciem o que escrevo. Na realidade, é para esse público que direciono meu trabalho.
E, quanto a Marcelo Mirisola vir a se tornar “meu exemplo e guia”, tenho a dizer a esse meu editor que ele tem razão. Seguindo o exemplo de Mirisola, digo a esse editor um sonoro e suculento “vá se foder!”
Mesmo porque, como diria o sábio e saudoso Sérgio Porto, “não sou capaz de escrever pior do que isso”...
1 comentários :
Eu concordo que, se for uma característica regional do personagem, é válido escrever um "tá" ou coisas assim, típicas da Literatura atual.
Mas a narrativa não, por favor, isso é uma agressão a Língua Portuguesa. Sou uma mera observador aprendendo e adquirindo bagagem para ser escritora, tenho 25 anos, e nem eu sendo jovem gosto de ver a minha Língua Pátria sendo assassinada por narrativas pobres. Levando em consideração que estou falando de modo geral, pelo que leio por aí, afinal, eu não li o livro citado no artigo.
Quanto aos palavrões, acho válido se for uma característica do personagem, afinal, para se compor um personagem é preciso diferenciá-lo em sua totalidade. O Sr. me corrija se eu estiver errada. Mas como tudo nesta vida, o excesso estraga.
Recentemente eu li um livro que tinha este perfil. Muitos palavrões e um desenvolvimento fraquíssimo na construção do diálogo. Se o excesso de palavrões é necessário para o autor, significa que ele é amador no que faz, mas isso é a minha opinião como leitora.
Por isso creio que o dicionário e aqueles livros antigos que jovens odeiam ler pela dificuldade da língua, ainda são exímios professores.
Sou blogueira, por isso, desde cedo aprendi a ter orgulho de um texto impecável e busco exageradamente esta perfeição mas por gostar da minha língua pátria.
O que falta em alguns escritores é a sensação de trabalho bem feito em um texto/livro impecavelmente limpo, e como se diz na minha profissão (sou Designer Gráfico e Web Designer), menos é mais, sempre.
Dar espaços é adquirir excelência em minha profissão. Creio que seja a mesma coisa nas obras Literárias. O excesso é o morador de rua que pede esmolas.
Ler seus artigos torna a minha vontade de ler suas obras ainda maior!
Abs!
Bella Felix
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